10 de abril de 2013

Nássara, o último dos cariocas autênticos


Fim da década de 1960. A cidade do Rio de Janeiro estava em processo de rápida transformação. Prédios altos surgiam na orla das praias, edifícios antigos do Centro eram demolidos, a violência urbana começava a sair do controle. Antônio Gabriel Nássara, então com quase 60 anos, via as mudanças sem muita preocupação, mesmo sendo testemunha dos momentos áureos da Cidade Maravilhosa. “O autêntico carioca é aquele que depois de ter sofrido na carne todos os pesadelos que desabaram sobre o Rio moderno, ainda encontra em si amor e ternura pela cidade”, disse em entrevista ao jornalista Joel Silveira.

Nássara havia passado as últimas décadas praticando com louvor as principais características cariocas: o papo-furado em botecos, o bom-humor, o otimismo diante das dificuldades, os sambas compostos sob o ritmo de caixinhas de fósforo. Só temia pelo fim da espécie: “O bom carioca é uma raça em processo de extinção. Acabará quando acabar gente como eu. Ou como o Bororó, a Aracy de Almeida, o Marques Rebelo e o Di Cavalcanti”.

Nascido em São Cristóvão e criado em Vila Isabel, ambos bairros tradicionais da zona norte, Nássara produziu, entre um chope e outro, um importante legado artístico. Compôs exatas 235 músicas, todas com parceiros da pesada, como Noel Rosa, Wilson Baptista, Lamartine Babo, Mário Lago, Ari Barroso. Mas marcou-se mesmo por suas ilustrações, publicadas nos mais importantes jornais e revistas do Rio. Seus traços fortes, porém minimalistas, registraram os personagens da cidade: políticos, escritores, sambistas e gente do povo. Não era preciso olhar duas vezes para seus desenhos para identificar o homenageado – ou a vítima. “Ele capturava, com linhas fortes, a alma frágil de quem estivesse desenhando”, diz o escritor Ruy Castro.



Primeiro jingle da história
Nássara sempre gostou de desenhar. Aos 17 anos, passou a trabalhar como ilustrador do jornal O Globo. Logo depois entraria na Escola de Belas-Artes, curso que abandonaria no quarto ano. Já não dava conta das ilustrações que tinha de entregar, a essa altura em vários outros veículos de imprensa.

Além dos desenhos, também se tornou locutor do Programa do Casé, o mais importante programa de música da rádio carioca. Já começou inovando ao criar o primeiro jingle da história do rádio brasileiro: Ó padeiro desta rua / Tenha sempre na lembrança / Não me traga outro pão / Que não seja o pão Bragança. Para anunciar um laxante e não chocar a “tradicional família carioca” – e nem a censura, que encrencava com anúncios dessa natureza –, saiu-se com a historinha: “Um casal de noivos brigou. Ele, arrependido, resolveu fazer as pazes, mas a moça estava irredutível. Conversou com a futura sogra, que o aconselhou que presenteasse a filha com algo de valor. Comprou-lhe, então, uma jóia caríssima. E não fez efeito. Deu-lhe um casaco de peles. Mas não fez efeito. Então, lembrou de dar a ela um vidro de Manon Purgativo... Ahhh! Fez efeito! Manon Purgativo, à venda em todas as farmácias e drogarias.”



Mas que calor...
A composição musical começou a tomar papel importante em sua vida a partir de 1932, ao emplacar nas rádios a música Formosa, em parceria com J. Rui. Outras grandes canções surgiriam nas décadas seguintes, principalmente marchinhas. Qual causou mais comoção foi a marchinha Alalaô, composta em parceria com Haroldo Lobo, que contou com uma genial orquestração de Pixinguinha. Os versos Alalaô / Mas que calor / Atravessando o deserto do Saara... se tornou o maior sucesso do carnaval de 1941. E de todos que viriam pela frente.

Outros sucessos surgiriam: Retiro da Saudade (com Noel Rosa), Mundo de Zinco (com Wilson Baptista), Quem Não Chora Não Mama (com Roberto Martins). Apesar disso, sugeria que tratava a música como um hobby. “Eu não me considero compositor. Eu fiz música, é diferente. Não tenho nem um décimo da força de Noel Rosa”, afirmava, modestamente.

Aos poucos, foi se afastando das músicas e das ilustrações. Mas nunca dos bares e da boêmia. Havia quem disputasse a cadeira mais perto de Nássara para ouvir suas histórias, sempre surpreendentes. “Ele tem um bom humor contagiante, boa educação inata, o irresistível amor pela noite. Tem também o bate papo colorido no qual as palavras, arrumadas com maestria e propriedade, jamais repetem as mesmas histórias”, exaltou Joel Silveira.



Inventor do Rio
Sua carreira ganharia novo fôlego em 1976, ao ser convidado para fazer parte da equipe de O Pasquim. Lugar ideal para seus traços – num tempo em que a imprensa já começava a se tornar mais carrancuda, com menos espaços para experimentalismos. Se antes retratava Noel Rosa, Getúlio Vargas, Mário Lago, agora dava vida a Martinho da Vila, Pelé, Paulinho da Viola.

A partir dos anos 1980, passou a trabalhar menos, até por uma gradativa perda de audição. Mas não perdia o bom-humor. “Em Nássara nunca dará cupim”, como Ari Barroso profetizou décadas antes. Em 1996, aos 85 anos, ainda ilustrou o delicado livro infantil Moça Perfumosa, Rapaz Pimpão, de Daniela Chindler. Mas não viu o resultado. Morreu em casa, em 11 de dezembro de 1996, vítima de enfarte. “A gente é que nem lâmpada. Um dia apaga”, disse a amigos, poucos meses antes da morte.

Dos bons cariocas em extinção, foi o último a se despedir da Cidade Maravilhosa. Mas já havia deixado uma herança. “De uma certa maneira, o Rio é uma invenção de Nássara, Orestes Barbosa e Noel Rosa. Inventores também do papo-furado, foram se distraindo e a cidade cresceu em volta deles”, escreveu Millôr Fernandes.


5 de abril de 2013

Martinho da Vila levou o samba à terra do semba (e vice-versa)


Integrantes do Canto Livre de Angola com Martinho e Alcione

Em meados da década de 1970 não havia uma embaixada brasileira em Angola. Mas Martinho da Vila era chamado de “embaixador do Brasil” no país africano. O compositor de Vila Isabel – intrinsecamente ligado à causa negra – começou a fazer excursões do lado de lá do oceano Atlântico, e cada vez voltava mais encantado com a riqueza e a diversidade cultural que via. Em 1980, enfim, idealizou um grande projeto de intercâmbio cultural entre os dois países: o Projeto Kalunga.

A organização ficou a cargo de Martinho e do produtor Fernando Faro. Durante todo o começo da década artistas brasileiros de primeira linhagem foram mostrar o samba à terra do semba: Chico Buarque, Dorival Caymmi, Clara Nunes, Miúcha, Djavan, Dona Ivone Lara, João Nogueira e outros. “O que mais ficou marcado na minha memória foi a participação de Dorival Caymmi sozinho com seu violão, e o povo todo cantando a letra inteira com ele”, afirma Martinho.

Três anos mais tarde, Martinho inverteu a direção. Elaborou o Canto Livre de Angola, que trouxe ao Rio, São Paulo e Salvador a então desconhecida música angola, com a participação de Elias Dia Kimuezo, um dos mais importantes nomes da música do país. O projeto rendeu o elepê Canto Livre de Angola.

De ambos os projetos, surgiram novas canções, como Morena de Angola, de Chico Buarque. A letra mais emblemática criada a partir do intercâmbio cultural é Lá de Angola, de João Nogueira, que encerra a discussão entre cariocas e baianos sobre o surgimento do samba: É preciso navegar / Pra poder se esclarecer / Do lado de lá do mar / É preciso ver pra crer (...) Samba vem lá de Angola / Não vem da Bahia, não / Samba vem lá de Angola / Não vem lá do Rio, não.