19 de novembro de 2010

Música de preto e sobre preto (3): Funk, o novo samba

Há pouco tempo, num pequeno texto sobre cultura popular para a revista Almanaque Brasil, sugeri que o preconceito que rola contra o rap e o funk é o mesmo que o samba sofria há décadas. Todas as manifestações culturais de origem negra tiveram começo duro no Brasil. João da Baiana, por exemplo, cansou-se de ter seu pandeiro confiscado pela polícia na década de 1910. Mas não só os sambistas que encararam o preconceito.

A umbanda era considerado caso de polícia até a década de 1940, quando um congresso convenceu o presidente Getúlio Vargas a assinar sua legalização.

Os praticantes de capoeira também eram perseguidos até a mesma década, e praticá-la poderia dar pena de prisão de até três meses.

Hoje, os brancos de classe média e as meninas de colégios particulares lotam as rodas de samba pela cidade. As academias de capoeira também têm mais brancos que negros. Há espaços de umbanda em bairros chiques, e dondocas fazem fila para ter um conselho espiritual. Nada contra os brancos que frequentam estes espaços. Mas é irônico.

Sagaz, o sambista Geraldo Filme retratou este cenário em Vá Cuidar da Sua Vida, que contou com gravação definitiva de Itamar Assumpção no disco Pretobrás. Dando-me (inadvertida) liberdade como compositor, imagino como faria um outro Geraldo Filme daqui a 40 anos: Preto cantava funk / Dondoca passava mal / Essa música é violenta / As letras são do mau / Hoje, ela tá no funk / Requebra e acha graça / Agora ela é uma cachorra / Mas uma cachorra de raça....

Vá Cuidar de Sua Vida - Itamar Assumpção

17 de novembro de 2010

Música de preto e sobre preto (2): "Dona Ana fez de mim um homem, não uma puta"

O candidato Netinho de Paula (que levou meu voto) recebeu muitas críticas durante as eleições ao Senado em 2010. Algumas justas, como ter agredido sua mulher e acusações de não pagar direitos trabalhistas. Outras totalmente preconceituosas. Uma das que ouvi: "Netinho ficou rico e esqueceu a periferia. Aposto que se sente branco. Foi morar em Alphaville e pouco se importa com a quebrada".

É puro racismo. Enquanto os negros pobres que ascendem socialmente têm a "obrigação" de se preocupar a vida toda de onde vieram, aos brancos é propagado um mantra: "Suba na vida, suba na vida, suba na vida!". Ninguém acusa Silvio Santos de ter enriquecido e esquecido dos amigos camelôs. Pouca gente está preocupado se Samuel Rosa, Arnaldo Antunes, Dinho Ouro Preto, Tico Santa Cruz etc tinham origem pobre. Pior ainda quando já se é sabido que a pessoa era rica de infância. Sobre Luciano Huck, branco e rico desde pequeno, não se põe nenhum peso de ter de se preocupar com as questões sociais. Ele tem passe livre para a explorar a miséria humana até não poder mais em quadros como o Agora ou Nunca. O quadro é um caldeirão indigesto, numa humilhação sem fim para um pobre coitado levar 10 mil reais para casa. Huck pode morar em Alphaville à vontade. Tem todo o direito de ter quantos Audis quiser na garagem. Netinho, não. Ter nascido preto e periférico é uma marca que o cantor levará para o resto da vida.

Para que toda esta introdução? Para analisar um dos desabafos mais sinceros e fortes da música brasileira, vinda de um preto pobre que "subiu na vida": a música Jesus Chorou, escrita por Mano Brown, líder dos Racionais, principal grupo de rap do Brasil - e, para mim, o grupo contemporâneo mais talentoso e genial.

A música faz parte do disco Chora Agora, Ri Depois e o CD todo me soa como um desabafo contra os "zé povinho" (como Brown diz), que são as pessoas que o acusam de ter se tornado rico e desprezado a região de onde veio. Ao ganhar notoriedade e dinheiro, Brown parou de receber unicamente manifestações preconceituosas dos brancos de classe média, mas também pelos moradores da periferia. É como se um preto e pobre não tivesse para onde correr.

Jesus Chorou dá uma demonstração sem máscaras das inquietações, contradições e solidão de Brown. Por ser negro, por ter vindo da periferia, por ter se tornado um sujeito com dinheiro. O cantor, que sempre usou as questões raciais em suas músicas, agora se vê num paradoxo. Como uma frase que vez ou outra surge por aí: "Fala de pobreza mas tem Audi?".

Nos primeiros minutos da música é reproduzido um telefonema entre Brown e um amigo, que avisa ter encontrado um sujeito que diz: Esse Brown aí é cheio de querer ser / Deixe ele moscar e vir cantar na quebrada / Vamos ver se é isso tudo quando ver as quadradas / Periferia nada, só pensa nele mesmo / Montado no dinheiro, e cês aí no veneno. Num misto de indignação e preocupação, Mano Brown defende-se: Amo minha raça / Luto pela cor / O que quer que eu faça é por nós, por amor. Para depois disparar, num verso seco e irrefutável: Dinheiro é bom, eu quero sim / Se essa é a pergunta / Mas dona Ana fez de mim um homem, não uma puta.

A música segue com a mesma aflição e com grandes versos, como quando um sujeito dita a Brown como ele deve agir: Famoso pra caralho, durão, xi, truta / Faz seu mundo, não, jão / A vida é curta / Só modelo dando boi / Põe elas pra chupar e manda andar depois. Arrisco dizer que o último verso da música resume sua inquietação diante deste cenário opressor: Lágrimas...

Bem, é melhor ouvir Brown do que me ler. Segue no vídeo abaixo. Mas a pergunta que fica: já é possível a um negro ser rico em paz no Brasil? Já dá pro lugar natural deles não ser apenas a periferia, sem que haja nenhum ônus por isso? Jesus Chorou deixa dúvidas.

Ah, claro, não vale o Pelé...

Racionais MC's 1000 trutas 1000 tretas Jesus Chorou

15 de novembro de 2010

Semana da Consciência Negra: música de preto e sobre preto (1)

Na Semana da Consciência Negra, vou colocar uma canção por dia (de qualquer gênero) que retrate os negros, as questões e dilemas raciais e tudo mais o que envolva este tema tão mal resolvido no País.

Pra começar, Preconceito, um grande samba de Wilson Batista e Marino Pinto. Na letra, o sujeito, negro, suplica à amada branca que não o maltrate, já que, apesar de ser "moreno demais", "no fundo é um bom rapaz".

E fecha com um argumento irrefutável: Meu samba, vai e diz a ela / Que o coração não tem cor.

Este samba de 1941 dá um indício da naturalidade com a qual o racismo era tratado na época.

Assista, pela voz e violão de João Gilberto, uma das obras-primas de Wilson Batista.

João Gilberto - Preconceito - Montreux 1985

Vaias da música popular

Principalmente durante os anos 1960, a vaia se tornou protagonista de muitas apresentações de músicos brasileiros. A plateia - por um bom tempo - sentia-se na obrigação de deixar claro que fazia parte da apresentação. Muitos shows tiveram público mais apaixonado do que clássicos de futebol. Não se safaram sequer Chico Buarque, Caetano Veloso, Tom Jobim, Gilberto Gil e outros nomes que hoje soam intocáveis. São boas histórias que mostram um tempo em que a ideologia vinha acima do bom-senso. Será que não repetimos a mesma falta de noção ao torcer o nariz pra muitos músicos atuais?

Uma das mais célebres foi a vaia que Tom Jobim e Chico Buarque tomaram no Maracanãzinho. Tom  suportou exatos 23 minutos de vaias durante a apresentação de Sabiá, na fase eliminatória do 3° Festival Internacional da Canção. A plateia de 20 mil pessoas que lotava o ginásio considerava a canção alienada. Quase todos torciam por Pra Não Dizer que Não Falei de Flores, a politizada canção de Geraldo Vandré.
Vandré tenta acalmar a plateia

O co-autor de Sabiá, Chico Buarque, escapou dos apupos por estar em turnê pela Europa. Na finalíssima, entretanto, teve que encarar a multidão. E suportar mais vaias, que calaram as intérpretes Cynara e Cybele. Ao fim da apresentação, Geraldo Vandré tomou as dores dos adversários e, ao microfone, proferiu uma de suas últimas frases em público durante muitas décadas. “A vida não se resume a festivais!”, bradou à plateia.

Contrariando a preferência popular, Sabiá foi a vencedora. E logo seria adotada como uma espécie de hino da saudade dos exilados políticos: Vou voltar / Sei que ainda vou voltar / Para meu lugar

Veja, abaixo, a intervenção de Geraldo Vandré - não registrada em vídeo. E, na postagem anterior, a vaia recebida pelo quarteto Chico, Tom, Cynara e Cybele. Não se deixe levar pela edição da Globo, que mostra um monte de gente com cara satisfeita. A vaia foi uma das mais feias da história dos festivais.

Cynara e Cybele cantam Sabiá - FIC 1968 - Rede Globo