5 de agosto de 2010

Nos sambas, pedaços de seu coração

O sambista baixinho e sedutor cunhou a expressão usada comumente até hoje: dor-de-cotovelo. Vítima de amores e desamores, de paixões avassaladoras e términos arrasadores, transportou para suas canções a melancolia que lhe acompanhava. Sem sair de Porto Alegre, tornou-se um dos maiores nomes do samba. Definia: “As minhas músicas são biografias das páginas mais tristes da minha vida”.

"Tudo o que eu canto é verdade", dizia Lupicínio
A cena é clássica: o cidadão entra no bar sozinho e melancólico. Na cabeça, a amada, “aquela ingrata”, que o abandonou. Pede chope ao garçom. Depois, passa pro uísque. Lá fica durante horas, com os cotovelos sobre o balcão, remoendo a tristeza pela separação amorosa. São esses momentos que inspiraram Lupicínio Rodrigues a construir um repertório sem paralelo na música brasileira, e a criar a expressão que caiu no domínio popular: dor-de-cotovelo.

Mas não foi apenas na observação alheia que o gaúcho construiu a sua obra. Boa parte das canções é autobiográfica. Sua vida amorosa cheias de desilusões serviu-lhe de inspiração para muitos sambas. São mais de 300. Depois de décadas de relações atribuladas, tinha algo para comemorar: “Eu tive muitas namoradas na vida. Umas me fizeram bem, outras me fizeram mal. As que me fizeram mal foram as que mais dinheiro me deram, porque as que me fizeram bem eu esqueci”.

Nascido em Porto Alegre a 16 de setembro de 1914, era o terceiro filho do casal Francisco e Abigail, que teriam 21 ao total. A infância foi pobre, mas digna. Era o primeiro homem e o mais mimado entre os irmãos. Pôde estudar, mas os pais ouviam muitas reclamações dos professores. Diziam que o pequeno Lupi (apelido que lhe acompanharia vida afora) só queria saber de baderna, de briga e de cantarolar. Já na adolescência foi parar no Exército, por ordem do pai, que queria garantir um bom futuro ao filho. Mas gostava mesmo era de passar noites em rodas boêmias, de fazer marchinhas para os blocos carnavalescos e de jogar futebol nos campos de várzea – décadas depois, inclusive, seria o autor do hino do Grêmio.

Com 16 anos, já no Exército, emplacou a primeira música num bloco: Carnaval, o marco inicial de sua carreira. E muitas viriam na sequência, além de se apresentar como cantor em conjuntos. Mas nunca aprenderia a tocar um instrumento sequer. Compunha era assobiando. Em 1932, Noel Rosa passou um tempo na cidade. Claro, se arranjou no circuito boêmio de Porto Alegre. Numa noite qualquer, assistiu ao conjunto Catão, no qual Lupicínio era cantor. Ao observar o adolescente, exclamou: “Esse garoto vai longe!”.

Nasce a dor de cotovelo
O primeiro grande amor de Lupicínio foi Iná, moça que conheceu em Santa Maria, no interior do estado, quando servia o Exército. O namoro durou seis anos, tornaram-se noivos. Só que ela vivia a reclamar de sua vida boêmia. Cansada, resolveu separar-se. Lupicínio ficou arrasado, mas seguiu a vida. Pouco tempo depois flagrou a moça de braços dados com um outro sujeito. Ela ainda avisou: “Prefiro me casar com qualquer um, até morrer de fome, do que voltar pra você”. O ciúme e a raiva fez nascer um clássico da música brasileira, Nervos de Aço: Você sabe o que é ter um amor, meu senhor / Ter loucura por uma mulher / E depois encontrar esse amor, meu senhor / Nos braços de um tipo qualquer. Iná ainda seria inspiradora de várias outras. “Tudo o que eu canto é verdade”, revelaria.

Mas o sucesso nacional demoraria. Porto Alegre era um lugar distante dos centros Rio e São Paulo. Se chegava por aquelas bandas praticamente só pelo mar. Os marinheiros – que frequentavam as boates da cidade – foram os responsáveis por levar a produção cultural local para outras plagas. E foi pelos marinheiros que Cyro Monteiro, que vivia no Rio, descobriu a música Se Acaso Você Chegasse, de Lupicínio e Felisberto Martins, em 1938. O samba se tornaria um grande sucesso na voz de Cyro, e o restante do Brasil começaria a conhecer Lupicínio.

Viveu e morreu do coração
É melhor brigar junto do que chorar separado”, costumava ensinar Lupicínio. Só tinha uma coisa que gostava tal qual as mulheres: a boêmia. Ele abriu bares para ganhar dinheiro e continuar na vida boêmia ao mesmo tempo. Chegou a confessar: “Eu não sou músico, não sou compositor, não sou cantor. Eu sou boêmio”. Mas também engajou-se na causa dos compositores. Em 1946, fundou a Sociedade Brasileira de Autores, Compositores e Escritores de Música (Sbacem) na cidade. E continuava a compor sem parar.

Um dos mais importantes divulgadores de sua obra foi Francisco Alves e, principalmente, Jamelão. O mangueirense dedicou discos exclusivos às canções de Lupicínio, entre as quais o clássico Vingança, outro recado para uma mulher que o abandonou. Sentimental e mulherengo, teve muitas paixões que lhe inspiraram sambas: Ela Disse-Me Assim, Volta, Esses Moços, Dona Divergência. Numa entrevista ao Pasquim, perguntaram: “Você tem alguma música cujo tema não seja mulher?”. A resposta: “Se tenho, não me lembro agora”. Numa outra entrevista, confessou: “As minhas músicas são biografias das páginas mais tristes da minha vida”.

Vinicius de Moraes emitiu uma verdade cristalina sobre os poetas e o ato poético: 'todo poeta só é grande se sofrer'”, lembra o pesquisador musical Ricardo Cravo Albin. Para depois, finalizar: “Nesse contexto, Lupicínio terá sido o maior dentre todos os poetas do cancioneiro. Porque ninguém exibiu – com tal opulência – os sofrimentos e as dores-de-cotovelo como o gaúcho baixinho, de voz mansa e olhos indecifráveis, numa estranha mistura de mel, sensualidade e carência afetiva”. Talvez a mais importante confissão deste estado de espírito seja um verso de Ponta de Lança: Uma pessoa prestando atenção /Vê que as rimas dos versos / Que eu faço / Trazem pedaços do meu coração. Em 1974, aos 59, Lupicínio morreu como viveu: do coração.

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